Um abrigo entre livros

As Edições SM, de origem espanhola, aportou há alguns anos no Brasil. Uma das ações da editora, através da Fundação SM, é o Prêmio Barco a Vapor de literatura para crianças e jovens.

Acho um prêmio importante, mas o que quero aqui não é fazer propaganda dele – disso a SM se ocupa muito bem.

Na segunda edição do Prêmio Barco a Vapor, em 2006, a Fundação SM produziu um pequeno documentário sobre uma experiência que então se desenrolava em S. Paulo.

Um edifício abandonado há anos, no centro da cidade, foi ocupado por moradores de rua. Depois de limpá-lo e deixar o prédio com condições mínimas de uso, os moradores, sob a liderança de Severino Manoel de Souza, instalaram uma biblioteca no lugar da garagem do edifício.

O vídeo dura apenas onze minutos, e vale a pena assistir todo:

Mas, se tiverem apressados, podem avançar até a marca dos 3:13 e ver a declaração do Sr. Severino Manoel de Souza.

Um abrigo entre livros

Viram?

Bom, aquelas pessoas tinham ocupado um prédio abandonado, e tinham – entre outras coisas – que puxar eletricidade até o lugar onde passavam a morar.

Como ninguém gosta de levar choque, o Manual de Eletricidade tornou-se um livro disputado. Com o passar do tempo, foi substituído na preferência por outros livros.

Pois bem, há uns três anos mostrei esse documentário para uma pessoa que fazia parte da comissão de seleção de títulos para os acervos dos programas da Biblioteca Nacional. A professora viu o documentário, achou interessante, mas disse que a aquisição daquele tipo de livros não era responsabilidade do Ministério da Cultura/Biblioteca Nacional.

O que me passou pela cabeça?

&%*@%#><@@#$ Sim, o que me passou pela cabeça só pode se expressar usando o truque das histórias em quadrinho. Esse tipo de situação só reforça minha firme convicção de que o acervo de bibliotecas NÃO pode ser escolhido centralizadamente por uma comissão de sábios. Deve, necessariamente, refletir necessidades da população onde está situada. Obviamente não pode se restringir aos livros de requisição mais imediata. Inclusive porque as leituras de boa parte da população são limitadas e, tanto quanto oferecer o que os usuários desejam, a biblioteca deve abrir horizontes e perspectivas. Para isso estão os mediadores de leitura, preparados para abrir essas janelas para os que procuram a biblioteca. Mas, atenção, a mediação deve supor sempre o diálogo. Se houver imposição e direcionamento, as chances de fracasso aumentam exponencialmente. Por essas razões é que defendo que uma política de acervos para bibliotecas públicas deve se fundamentar em dois pilares: ampla disponibilidade de títulos dentre os quais os responsáveis possam escolher o que melhor acham adequado ao seu público; formação continuada e estímulo para a atuação dos mediadores, sejam esses bibliotecários, atendentes ou voluntários (sim, voluntários são importantes para o bom funcionamento de bibliotecas públicas). E não vale o argumento de que a formação do pessoal das bibliotecas públicas brasileiros é insuficiente. O Censo das Bibliotecas demonstrou isso, que é algo visível para quem visita bibliotecas pelo país afora. Mas o que se vê, também, junto de pessoas desanimadas e burocratizadas, é um contingente de pessoas com enorme boa vontade e disposição para oferecer livros para os frequentadores de suas bibliotecas. É neles que devemos confiar. É melhor acreditar no bom senso e na disposição de milhares de pessoas que trabalham no precário sistema de bibliotecas públicas para que escolham seus acervos do que na sapiência de meia dúzias de pessoas, por mais bem preparadas que sejam e mais boa-vontade tenham. É impossível definir, a partir do Rio de Janeiro ou de Brasília - ou de qualquer capital - qual o acervo necessário e o que pode abrir mais perspectivas para o crescimento como leitores dos usuários das bibliotecas espalhadas por todo o país. Por isso mesmo é que a metodologia a ser estabelecida pelo Programa do Livro Popular deve ser saudada. Certamente haverá problemas em sua implementação. Erros serão cometidos e dificuldades serão encontradas. Mas é melhor ter a coragem de mudar esse paradigma centralizador do que ficar ao preso ao que aparentemente é mais fácil.

2 comentários em “Um abrigo entre livros”

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