A coluna de hoje vai escrita pela Maria José Silveira, com quem vivo a quase cinquenta anos. Vidas ricas, militantes, com as alegrias e tropeços da vida de todo mundo. A nossa, então, que atravessa militância, a minha prisão política e a clandestinidade dela, exílio, a antropologia e o mercado editorial! Por iniciativa dela fomos recrutados, eu e o Márcio Souza, para a maravilhosa aventura da Editora Marco Zero, frustrada depois de dezoito anos de vida.
Maria José tem seu espaço, como escritora, cronista e como pessoa que reflete sobre o ofício de escrever nesse nosso Brasil. Nem precisaria de ocupar esse pedaço em que trato das questões do mercado editorial. O convite foi feito para que os leitores conheçam uma reflexão que eu não posso fazer, embora a conheça muito bem. A voz de uma editora e escritora, simplesmente.
Mulheres no mercado editorial
Maria José Silveira
Estava eu aqui, sentada no meu canto de escritora, quando comecei a ver nas redes sociais um tsunami de posts das hashtags #meuprimeiroassédio e #AgoraÉQueSãoelas, ao mesmo tempo em que via também as fotos e vídeos das marchas das mulheres com o #ForaCunha e #Abaixo o PL5069.
Achei extremamente animador ver esse movimento pelos direitos e liberdade de escolha das mulheres avançar nas ruas e nas redes com tanta força e emoção. Quem tem a minha idade viveu, nos anos 60, movimentos muito fortes em torno dos direitos das mulheres, que deixaram conquistas importantíssimas – as principais, talvez, a chegada da pílula, e a conquista de espaços de trabalho e da democratização do país – mas o nauseabundo preconceito contra nós e o direito de usarmos nossos corpos como queremos jamais foi de fato derrotado. E é terrível ver, de um momento para o outro, como a regressão tomou conta de vários segmentos que antes pareciam pelo menos neutralizados; é como se agora tivessem readquirido coragem para aparecer outra vez. Nós que pensávamos que certas questões já deveriam estar há muito ultrapassadas, com espanto nos vemos regredindo aos estágios iniciais da luta das mulheres.
Por isso foi muito bom ver essa reação quase instantânea das mulheres, esse novo movimento acontecendo. E acatando a campanha #AgoraÉQueSãoElas que convida os colunistas homens a chamarem uma mulher para escrever em seu lugar, Felipe me convidou para escrever sua coluna esta semana: aceitei. É uma campanha importante, e quero fazer parte dela falando do mercado editorial, onde esse preconceito é camuflado e negado, mas existe.
Quando, em 1980, com Felipe Lindoso e Márcio Souza fundamos a Editora Marco Zero (que depois nos foi estupidamente tirada), eu não estava preocupada com isso. Minha mãe foi uma mulher sábia e nos educou – irmãos e irmãs – com os mesmos direitos e deveres, as mesmas obrigações e os mesmos prêmios. E se, na minha adolescência, meu pai quis mudar essas regras, era tarde: já era inabalável minha convicta certeza da igualdade básica dos homens e mulheres. Mesmo assim, claro que não pude deixar de perceber que no mercado editorial – onde sempre houve um grande contingente de trabalho feminino – o fato de ser mulher era um peso a mais que tínhamos que enfrentar. Nas idas às gráficas, no contato com os distribuidores, aqui e ali, não era raro perceber o olhar de cima, ou de dúvidas, ou de insinuações. Felizmente, hoje, o número de mulheres que fundaram com sucesso suas editoras mudou muito, e quero crer que os problemas que elas enfrentam já não têm esse peso a mais.
Mas, como escritora, é ainda hoje que vejo um tipo de preconceito especial, nublado, e corrosivo ser exercido com bastante inconsciência. Jamais você verá, no meio editorial, entre editores e autores e os chamados curadores, alguém que se confessará machista ou misógino. Pelo contrário. São pessoas esclarecidas, que se consideram imparciais quanto ao gênero. E eu acredito – acredito mesmo – que elas realmente não percebem como são marcadas, também nisso, pela cultura em que foram criadas. Assim como os maridos em geral acreditam que seu trabalho é mais importante que o da mulher – ainda que estejam na mesma faixa salarial, ou na mesma faixa de prestígio. E assim como o pai deixa para a mãe os cuidados mais intensos com o filho porque sinceramente acredita que essa é a ordem natural das coisas, sem se dar conta de que isso é assim porque nossa cultura diz que deve ser assim.
Voltemos à literatura.
Quem quiser fazer, aqui no Brasil, um levantamento dos convidados a eventos, festivais e bienais, e dos indicados a prêmios literários, constatará a espantosa desproporção que existe entre homens e mulheres. Se fizer um levantamento da divulgação dada na imprensa e na mídia a livros escritos por mulheres (brasileiras), também constatará a desproporção. E isso é feito sem que se note que está sendo feito, como se também fosse da ordem natural das coisas: você nunca verá entre essas pessoas esclarecidas do meio editorial alguém dizer que as mulheres que escrevem hoje não são tão boas quanto os homens.
Não dizem por que não seria verdade. Não dizem por que, por ser pouco divulgada, a literatura escrita por mulheres brasileiras é muito menos conhecida do que a literatura escrita por homens brasileiros.
É menos divulgada, é menos lida, é menos conhecida, é menos convidada, é menos premiada.
Claro que temos nossas autoras prestigiadas, conhecidas e reconhecidas por todos, como Clarice, Lygia, Nélida, Ana Maria Machado, Cora Coralina (e não vou citar mais porque não é o caso). Temos nossas escritoras contemporâneas que também estão nos prêmios, convites, festivais. O que choca é a desproporção. Inclusive porque se a opressão da sociedade fez com que as mulheres (salvo as exceções) só começassem a escrever e participar do jogo literário muito depois dos homens (o que talvez até possa explicar um pouco a grande desproporção de sua presença no cânone literário), no momento contemporâneo há um grande número de mulheres escrevendo. Mas é tanto o desconhecimento sobre elas que fica difícil saber se estão escrevendo com qualidade ou não.
E aí é que entra a questão.
Por que não lemos mais essas mulheres?
Porque achamos que não vale a pena. Achamos que vai ser perda de tempo. Achamos que elas nada têm a nos dizer.
Não lemos por preconceito.